Carregação estacionada em Paracatu

Por: Carlos Lima (*Arquivista)

Em 1748 no então Arraial de São Luis e Sant’Anna das Minas do Paracatu uma carga de molhados tinha sido apreendida sob a alegação de sanear possíveis débitos de seu proprietário junto à chamada Fazenda Real, espécie de fisco daquele período. Esse sequestro fora levado à denúncia junto à Comarca Eclesiástica local, haja vista os indícios de que a mercadoria teria sido revendida com o objetivo de beneficiar terceiros, e não o de honrar com erário, como certamente desejaria fazer crer o denunciado do caso.

Francisco Rodrigues Fraga, autor da denúncia, arregimentou 3 testemunhas as quais compareceram aos [10] dias do mês de dezembro de 1748 à presença do escrivão da Comarca Eclesiástica da Manga, em Paracatu, Padre Luiz [Marreyro] da Silva, e prestaram depoimento contra José dos Santos Freyre, o qual fora visto de posse de uma carga de mercadorias a qual não lhe pertencia e fora vendida ao Sr. João de Souza Britto supostamente sem autorização alguma da Fazenda Real.

A testemunha de nome Manoel Rodrigues de Almeida afirmou em seu depoimento, às folhas 8 e 8 verso  que “entrara neste Arrayal Antônio de Castilho com huma carregação de molhados sortida a vender na Rua de Goyazes vizinho de hum João de Souza Britto e a depois se ausentara, e de ver a carregação não sabe elle testemunha se ele a entregara a pessoa alguma ou não, só sabe que João de Souza Britto a disppos aos compradores e não sabe se a dispôs por conta da fazenda real ou do Castilho, por ter estado o tal Castilho em casa do Sargento mor José dos Santos Freyre”.

Local onde a carregação havia sido vista sendo comercializada irregularmente, segundo a denúncia. Imagem ilustrativa: Procissão na antiga Rua de Goiazes (atual rua Goiás) em Paracatu. Foto: Olímpio Michael Gonzaga / [19–]

E relata mais a testemunha à folha 8 verso “que o ouro da carregação que se dispoz se entregou ao dito denunciado, para a fazenda Real e o que, não pagarão, sem termos judiciais, forão executados, pela fazenda Real, de que estiveram alguns compradores prezos e pagaram ao dito denunciado, e ouvira elle testemunha dizer que ao mesmo denunciado, que aquella carregação vinha debaixo digo vinha das Minas Gerais debaixo de hum sequestro da mesma fazenda Real a requerimento do contratador das entradas Domingos Ferreyra Veyga, de que he o denunciado, neste Arrayal, [e Freguesia], administrador do mesmo contrato, a dispor para pagamento do mesmo contrato”.  

Folha 8 verso com o depoimento de Manoel Rodrigues de Almeyda

Outra testemunha, de nome Sebastião Machado Moreyra, afirmou às folhas 9 e 9 verso do precioso manuscrito que “ouvira elle testemunha dizer que a tal carregação não vinha sequestrada pela Fazenda Real nem ouvira nunca dizer que o denunciado, jurasse falço em tempo algum”, o que se comprovado fosse, indicaria sinais de lesão ao fisco, entre outras supostas contravenções.  

Na mesma linha dos depoimentos anteriores, também estava o relato da testemunha Antônio Ribeyro de Freitas em que afirmou à folha 10 que “a este Arrayal viera huma carregação de molhados de Antonio digo, que trouxera Antônio de Castilho das Minas Gerais a dispor neste Arrayal a qual se vendera a João de Souza Britto mas não sabe ele testemunha se esta carregação vinha sequestrada pela Fazenda Real ou não só ouvira dizer a José dos Santos Freyre que a tal carregação era sequestrada nas Minas Gerais pela fazenda Real, a requerimento do contratador para pagamento do que devia o Castilho ao Contrato mas sabe ele testemunha que João de Souza Britto a dispusera e cobrara [pelo] produto”.

O advogado da parte denunciada, supostamente identificado como José da Sylva da Fonseca, apresentara em 17de dezembro de 1748 a defesa de seu cliente ao afirmar que “não aseyto estes autos nem me conformo com a justificaçam do denunciante, onde mente continuamente”, escreve à folha 14 dos autos.  

No termo de conclusão dos autos de denúncia, datado de 18 de dezembro de 1748, o Reverendo Dr. Vigário Geral Padre Antônio Mendes Santiago despachara da seguinte forma à folha 14 verso: “Não obrigo a prova, desta denúncia ao denunciado a livramento”, sem contudo, ficar claro o desfecho desse processo, que por certo estaria incompleto em seu conjunto.

O manuscrito, que traz à tona essa curiosa história do passado de Paracatu, encontra-se já bem deteriorado pela ação de indesejáveis traças de livro e outras intempéries típicas de alguns ambientes e instalações inadequados, mas é sobremaneira um glorioso registro que oferece  conhecimento sobre a relação estabelecida entre a Comarca Eclesiástica da Manga, a Coroa Portuguesa e a população destes rincões das Minas Gerais.

(*) Carlos Lima é graduado em Arquivologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBa), é Pós-Graduado em Oracle, Java e Gerência de Projeto e é conservador e restaurador de documentos. Elaborou este artigo a partir de suas pesquisas nos fundos documentais do Arquivo Público de Paracatu – MG.

Referência: TRIBUNAL ECLESIÁSTICO. Denúncia de Francisco Rodrigues Fraga contra José dos Santos Freyre.Cx. 25. 1748. 9 fls.

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